Waldez Ludwig

terça-feira, 29 de março de 2011

"Pull up"!


Pura emoção! Dentro da cabine do E-190 da Azul, os instrumentos iluminados, a imagem do Pão de Açúcar e o som das duas turbinas, aceleradas. Do computador de bordo, vem a voz aflita que alerta em inglês: para cima!, para cima! para cima!

por Roberto Muylaert fotos Hélio Campos Mello


A rolagem do E-190 foi perfeita. Dava para contar o número de juntas na pista do aeroporto Santos Dumont, cabeceira 20, pela vibração crescente das rodas do avião ao passar por elas, acompanhada por um barulho surdo, cujo volume aumenta até chegar à velocidade de começar a voar. É hora da rotação, quando o aparelho vira o nariz para cima e ganha sustentação a 200 km/h. Já no ar, um baque abafado garante que o trem de pouso foi recolhido.

Estranho, decolamos direto em direção ao Pão de Açúcar, sem fazer a clássica e obrigatória curva para a esquerda, e logo estamos sobre o morro mais famoso do mundo, com seu bondinho pendurado no cabo, a uma altura segura, graças às poderosas turbinas GE.

Como todo piloto sabe, e quem tem medo de avião também, de tanto ler na internet, existe uma velocidade V1 que, quando atingida, não dá mais para mudar de ideia: é decolar ou decolar, mesmo que seja com um motor só. A dica do comandante, neste caso indesejável e muito improvável, é apertar o pedal do leme de direção do lado do motor funcionando para evitar uma desagradável curva para o lado do motor apagado, em função da diferença de empuxo entre o motor rodando e o que parou.

Tanto detalhe técnico só tem uma explicação: estou na cabine de um E-190 da Azul (frota de 26 unidades até o final do ano), fabricado pela Embraer, com duas feras no comando. Na es-querda, o comandante Miguel Dau, 14 mil horas de voo, sendo 1,5 mil pilotando caças. No manche da direita, o Comandante Antonio Buchrieser (o Buca), 21 mil horas de voo. Os dois vindos da antiga Varig, escola que forma comandantes com nível internacional, que hoje se espalham por tudo quanto é país a pilotar com qualidade aeronaves de dezenas de companhias aéreas, mundo afora.

Para quem tem medo de avião, não adianta ser racional, o medo é imune à lógica. O problema é que andar no chão desde antes do carro de boi é coisa natural. Viver nas alturas, sem ser passarinho, é muito estranho. Em todo o caso, não custa desfilar estatísticas a respeito da segurança de voo: a chance de bater o carro e morrer a caminho do aeroporto é 500 vezes maior que a do avião cair. Até nadar na piscina é mais perigoso. Seria preciso viajar todos os dias em um avião comercial, durante 712 anos, para que alguém, com certeza, se envolvesse em um acidente aeronáutico. Transporte mais seguro que esse, só elevador, com boa manutenção.

Prossegue o E-190 em voo de cruzeiro, embora ainda baixo, a 5 mil pés, ou 1,5 mil m de altitude. É hora de curtir a sempre fascinante paisagem do Rio de Janeiro visto do alto: centro da cidade, Flamengo, jardins de Burle Marx, Jardim Botânico, Copacabana, Arpoador, Ipanema, Leblon, Barra, Lagoa, Jóquei, Maracanã, aeroporto Tom Jobim, Rocinha, Dois Irmãos, Pedra da Gávea. Essa vista ainda consegue tirar o fôlego da gente, mesmo depois de dezenas de voos na ponte aérea. Imagine agora o que a paisagem única e a vista privilegiada farão com a cabeça das pessoas que vierem para a Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos, dois anos depois.

É que o Rio é a única metrópole do mundo com população grande, vida cultural e de negócios de porte, sede de grandes companhias, empreendimentos imobiliários supervalorizados, alta gastronomia, vida noturna, e que é também um balneário de primeira, melhor que qualquer praia da Côte d'Azur.

A população tem características de bom humor de quem vive à beira-mar. Em frente ao Atlântico, depois do chope bem tirado, basta atravessar o asfalto com cuidado, para não ser atropelado, para chegar a uma praia repleta de biquínis bem arejados, areias brancas e macias e mar geladinho para contrastar com os 40 °C de que o turista gosta no verão, mas nem tanto quem trabalha na cidade. O cidadão de terno e gravata a caminho do escritório, no auge do verão carioca, contemplando as praias cheias de gente sarada, costuma protestar dizendo que o Rio só tem duas estações no ano: verão e inferno.

Quem faz a rota Rio-São Paulo prestando atenção nas praias sabe que as da cidade do Rio de Janeiro estão entre as melhores de toda a Costa Verde, a partir de Santos. É dez, também nesse quesito, a nota do balneário, que já foi capital do País.

Cabine do E-190 Não apenas a paisagem é reproduzida, mas também a sensação de voar a 300Km/h ou de cair


O voo prossegue tranquilo pelos ares do Rio, até que, de repente, sem mais nem menos, o comandante Dau inclina o avião um pouco demais para o lado esquerdo, mais e mais ainda, e continua no giro exagerado em torno do eixo longitudinal. De repente, o mar está acima da minha cabeça, e o céu lá em baixo, em um roda-roda que não para, até o avião estabilizar novamente. É uma manobra de caça, para lembrar os bons tempos do Dau na FAB, executada com maestria em avião comercial, cuja estrutura não foi feita para tamanho exagero: mesmo assim, resiste bem. Só então me lembro dos sacos de papel parafinado, colocados de forma estratégica na bolsa de sua poltrona para o caso de "desconforto", eufemismo para "vomitar". No tempo da VASP, a garotada irreverente dizia que a sigla da companhia aérea, gravada nos sacos de "desconforto" queria dizer: VASP - "Vomite Aqui Seu Porco".

OS HOMENS NO COMANDO
Pilotos que operam o simulador de voo da Azul

Miguel Dau
À direita, na foto acima, ele tem 33 anos de experiência na aviação civil e militar. Vice-presidente técnico-operacional da Azul, é o responsável pela condução das operações e pelo gabinete de crises na companhia. É comandante de Embraer 190/195, além de ter operado os Boeing 767, 737 e 727, na Varig, por 19 anos.
Foi professor titular de Logística e Transporte Aéreo em importantes universidades do Brasil. Tem no sangue o instinto do piloto de caça, como demonstrou aos repórteres Roberto Muylaert e Hélio Campos Mello, encantados com as suas manobras no voo do simulador.
Ao ser questionado sobre a diferença entre voar o caça F-5, de fabricação americana, simulando combate com o Mirage francês, ou um avião comercial em voo de rotina, responde sem titubear: "É como comparar corrida de F1 com prova de kart!". Carioca convicto, Dau passa todos os fins de semana no Rio, voando sempre pela Azul, é claro.


Antonio Tadeu Buchrieser
É instrutor no simulador de voo dos aviões da Azul fabricados pela Embraer.
Considera o E-190 um grande avião, verdadeiro computador que voa com mais software que o Boeing 737-300, o último aparelho que comandou na ponte aérea. Com seu jeito calmo, parece ter nascido para formar pilotos. Gaúcho de Canoas, fez curso de piloto comercial e de instrutor no Aeroclube de São Leopoldo (RS). Chegou à Varig já como instrutor, na Escola de Aeronáutica da Varig - EVAER, em 1973. Foi comandante do Electra, na ponte aérea, de 1984 até o final da operação da aeronave, em 1992, acumulando a função de instrutor. Tem 21 mil horas de voo. Lembra do sucesso do Electra: "De extrema confiabilidade e potência, onde a parada de um motor nem era considerada uma emergência". Achava graça dos empresários disputando o lounge do fundo do avião para fazer reunião de trabalho, durante o trajeto da viagem.
"O único problema do Electra eram os radares muito antigos, escuros mesmo, difíceis de ver, o que fazia o avião entrar algumas raras vezes em uma turbulência mais pesada, o que não representava nada para aquela estrutura resistente. Tanto que o apelido dos radares, com imagem na cor sépia, eram Stevie Wonder e Ray Charles, não por acaso, dois cegos", brinca o Buca.



O enlouquecido comandante começa então a perder altura de forma vertiginosa, enquanto o aparelho de som de dentro da cabine brada com voz de pânico alternada entre masculina e feminina: "Olha o chão!", "Muito baixo!", para cima!, "Pull up!" "Pull up!". Em vez de uma pista de pouso se aproximando, o que está à nossa frente é a ponte Rio-Niterói, para a qual o avião investe a 300 km/h, de tal forma que não é mais possível desviar. Quase raspando a barriga do E-190 na água, o comandante entra por baixo da plataforma da ponte, felizmente sem tráfego naquela hora, com os pilares chispando como foguetes nos dois lados do avião em disparada, com as pontas das asas quase no concreto.

Primeira página de O Globo no dia seguinte, boletim extra interrompendo a programação da Rede Globo, chamando a atenção para a irresponsabilidade da manobra (felizmente sem vítimas), não tivesse a experiência sido feita no simulador de voo da Azul, sem sair de Alphaville, pertinho de São Paulo, onde fica a sede da empresa.

Assim como não precisamos sair do simulador da Azul para decolar da cabeceira 20 do Santos Dumont, é possível voar para quaisquer dos 22 aeroportos frequentados pela empresa aérea, com o objetivo de treinar novos pilotos e reciclar veteranos.

O fantástico equipamento habilita os pilotos sem gastar uma só libra de querosene. Caso a manobra de um candidato menos experiente resulte em crash, o único prejuízo para os tripulantes é moral.

O simulador custa US$ 25 milhões, o mesmo preço de um dos novos aviões ATR-600, turboélice franco-italiano para 70 passageiros, que a empresa está comprando para voos ainda mais regionais do que já faz. A frota será de 40 aparelhos. No teste para copiloto, um candidato para trabalhar na Azul já vem com brevê de piloto comercial, mais 400 horas de voo. Assim mesmo, pratica no simulador por 100 horas, mais 56 horas de treinamento em rota. A diferença de custo do simulador, ou do avião, em rota, é de US$ 8 mil/hora para o voo real, contra US$ 1,5 mil por quatro horas, em voo virtual.

Ao entrar na cabine da aeronave-simulador, não é preciso colocar cinto de segurança, nem para fazer tunô. O equipamento dá a sensação exata de frio no estômago na descida abrupta, quando simula correntes ascendentes e descendentes, sem ultrapassar 2 G, ou duas vezes a aceleração da gravidade. Mas o deslocamento real é pequeno, e ninguém corre o risco de cair da poltrona ou bater a cabeça no teto. Se a manobra for muito errada, o simulador simplesmente considera que houve crash, desastre. Só de raiva, desliga tudo, na hora.

Mas os dois disciplinados comandantes, munidos de reflexo condicionado proporcional ao elevado número de horas de voo, afivelam os cintos antes da decolagem. No voo simulado, até o peso total do avião é escolhido e programado no computador de bordo. No nosso caso, decolamos, por deliberação do comandante, com 47 mil kg de peso total.

Uma novidade nos aviões da Embraer é o indicador de todos os dados principais necessários para orientar o voo bem na frente do piloto, sem que ele se preocupe em olhar para o painel de instrumentos. É como um quebra-sol desses que a gente tem no carro, só que transparente, com 62 informações em dígitos verdes, de fácil leitura, que ele acessa sem desviar o olhar, como os apresentadores de TV que usam teleprompter para ler as notícias.

Por falar em telejornal, a próxima novidade da Azul é a TV ao vivo a bordo. Ainda bem que vai começar fora do período eleitoral.

VIAGEM NO TEMPO

Simuladores fazem parte da história da aviação. E não somente dos tempos recentes. Já em 1910, nos primórdios da indústria aeronáutica, havia aparelhos para treinamento: eram na verdade fuselagens presas no chão e movimentadas por polias e cabos. Reproduzir as sensações das aeronaves em voo representava um desafio imenso para a tecnologia do início do século XX. Um dos modelos que melhor resolveu o problema foi o Link Trainer (foto), criado em 1929 por Edwin Albert Link. Por meio de um intrincado sistema de bombas pneumáticas, válvulas e infladores manuais, reproduzia a operação dos veículos aéreos. Em 30 anos, mais de 500 mil pilotos norte-americanos foram treinados em várias versões do simulador. Os modelos eletrônicos começaram a ser desenvolvidos nos anos 1940, com o início da Segunda Guerra Mundial. Durante mais de uma década, restringiram-se ao uso militar.
Em 1958, a Link Aviation construiu um simulador de DC-8, um dos primeiros a reproduzir o ambiente completo de um avião comercial. A cabine tinha movimento e, para o visual, a empresa desenvolveu um engenhoso sistema de câmeras de TV, montadas sobre trilhos, que filmavam painéis gigantes de cenas aéreas. Conforme o piloto virtual avançava ou virava, o equipamento "voava" junto, enviando as imagens para projetores. O estado da arte em matéria de simulador é o modelo utilizado pela Azul, em que este repórter e Hélio Campos Mello tiveram a sensação de fazer acrobacias em um avião comercial.